segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Meu memorial analítico descritivo



MEMORIAL ANALÍTICO DESCRITIVO
Alysson Cipriano Pereira

O futuro não nos faz. Nós é que nos refazemos na luta para fazê-lo. (Paulo Freire)

O presente memorial tem por objetivo descrever minha carreira de professor de Sociologia no Ensino Médio a mais de uma década e o quão é importante entrar no Mestrado em Educação ofertado pela UFMT para que consiga contribuir com um estudo para a melhora sistêmica das aulas ofertadas no Estado do Mato Grosso em Sociologia e para nossa nação como um todo, ao evidenciar um modelo de gestão de aulas ofertadas com um modelo racional burocrático adequado a permitir o estímulo crítico do ensino.
Meu nome é Alysson Cipriano Pereira, tenho 39 anos de idade, nasci e vivi praticamente toda minha vida na cidade de Maringá, no Estado do Paraná. Sou o último filho de João Cipriano Pereira e Maria Celia Pereira, que mesmo não tendo mais do que o ensino primário básico, permitiram condições para seus filhos conquistassem o Ensino Superior.
Sou casado com Hellen Waleska Giroto Pereira a quase 10 anos, mulher que me apoiou em tudo, inclusive não me permitindo esmorecer diante das dificuldades em trabalhar no comércio e estudar na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Assim como eu, ela leciona na rede pública de ensino. Desde 2012 compartilhamos da felicidade de termos um filho, Logan Arthur Cipriano Pereira, que me deu mais um motivo para continuar lutando para me tornar um profissional melhor e com a estabilidade mínima necessária para trabalhar. Neste ano, consegui passar no concurso público para professor do Ensino Médio na matéria de Sociologia no Estado do Mato Grosso.
Como exige este memorial analítico-descritivo, comentarei agora a partir de minha formação de ensino e minhas vivências educacionais. Comecei a estudar no ano de 1986, ano posterior ao fim da Ditadura Militar que assolou brutalmente nosso povo e nosso ensino. Embora não fosse perceptível ainda para mim que estava começando o processo de letramento, matérias de humanas não faziam parte do ensino de maneira correta, digo isso por causa da aberrante matéria de Organização Social e Política Brasileira (OSPB), conhecida hoje por reverenciar nossos fardados opressores.
No ano de 1988 tivemos a nova Constituição Federal, que permitiu já no seu início a liberdade de expressão. Dois anos depois, quando entrei na quinta série, minha professora de História disse em nossa primeira aula para esquecermos boa parte do que nossos livros de OSPB diziam para nós, pois não eram verdade. Meu chão saiu de baixo de meus pés. Como assim nossos livros mentiram? Quem era ela para dizer isso?
Ao terminar o Ensino Fundamental mudei para o Colégio Estadual Dr. Gastão Vidgal, que também era público, mas era uma escola maior e com o ensino médio. Lá, por uma dessas ironias do destino, conheci um livro que teria na formação do autor a relação com meu trabalho atual (e espero de toda minha vida). Não tive Sociologia no Ensino Médio (mesmo o Paraná tendo começado a ofertar antes de outros estados, isso ocorreu em 2006, e o fato que narro é do distante ano de 1997), mas a conheci como medida corretiva por algo errado que fiz na escola. O diretor me passou para ler e resumir o livro Ética e cidadania do sociólogo Herbert de Sousa (Betinho, muito conhecido na época pelas campanhas de combate a fome na televisão).
Em 1998 terminei o Ensino Médio e tentei ingressar sem sucesso na Universidade Estadual de Maringá no curso de Educação Física. Os vestibulares eram costumeiramente no início e no meio do ano. Meu primeiro vestibular foi no meio do ano de 1999 e o segundo no início de 2000. No último dia de prova do segundo vestibular fiquei sabendo de 11 cursos novos que iriam iniciar, dentre eles dois de humanas, Ciências Sociais e Filosofia. O novo vestibular seria um mês adiante, o que permitiria não ficar de fora do ambiente universitário mais um ano. Filosofia era no período vespertino, o que impossibilitava minha necessidade socioeconômica de trabalhar. Ciências Sociais era no período noturno. Realizei o vestibular e ingressei na primeira turma de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá.
Ingressei na primeira turma, mas só me formei no ano de 2006 (meu trabalho na época tomava tempo demais e precisava de muito para a leitura acadêmica adequada). Não desisti, e isso me possibilitou uma de minhas maiores felicidades, que é lecionar (no Paraná as aulas de sociologia voltaram ao ensino médio em 2006 e obrigatoriamente em todo o Brasil em 2008, décadas depois de serem retiradas pela ditadura militar). Em 2007 comecei a lecionar sociologia no ensino médio, e após 11 anos posso dizer que vivenciei o processo em que a sociologia foi garantida por lei em 2008 e retirada sua obrigatoriedade em 2017.
Explicarei isso a partir de agora. Até 2009 a disciplina era ofertada apenas em um ano do ensino médio, o que dificultava trabalhar adequadamente os conteúdos programáticos. Porém, o planejamento visava ampliação das séries ofertadas com o passar do tempo, como previsto na Lei nº 11.684/2008:

– iniciar em 2009 a inclusão obrigatória dos componentes curriculares Filosofia e Sociologia em, pelo menos, um dos anos do Ensino Médio, preferentemente a partir do primeiro ano do curso;
 – prosseguir essa inclusão ano a ano, até 2011, para os cursos de Ensino Médio de 3 anos de duração, e até 2012, para os cursos com 4 anos de duração.
Os sistemas de ensino e as escolas que avançaram, já têm implantado um ou ambos componentes em seus currículos, terão, com certeza, a possibilidade de antecipar a realização desse cronograma, para benefício maior de seus alunos.
           
            Em consonância com a Lei, nº 11.684/2008 a maioria dos Estados brasileiros retomaram progressivamente as aulas de sociologia no Ensino Médio, e Estados como o Paraná a colocaram no ensino médio com 2 aulas em cada ano. Vivenciei o atrito de estar no ambiente escolar neste processo, pois professores de outras disciplinas tiveram aulas reduzidas para tanto. Por não ter memória histórica de quando a disciplina foi retirada na ditadura militar ou por não considerar a outra disciplina com o mesmo grau de relevância, parte dos professores se revoltavam, mesmo que de forma silenciosa. Felizmente tínhamos a Lei que concordava com o Parecer da CNE/CEB nº 38/2006, homologada pelo então Ministro da Educação Fernando Haddad que exigia carga horária adequada para garantir o ensino com qualidade.

 Como já foi dito no Parecer CNE/CEB nº 38/2006, não há dúvida de que, qualquer que seja o tratamento dado a esses componentes, as escolas devem oferecer condições reais para sua efetivação, com professores habilitados em licenciaturas que concedam direito de docência desses componentes, além de outras condições, como, notadamente, acervo pertinente nas suas bibliotecas. Nesta oportunidade, pode-se acrescentar que as escolas devem definir claramente o papel desses componentes no seu currículo, destinando carga horária suficiente para o seu adequado desenvolvimento.

Vivenciei esta implantação que teve ganhos para alunos e professores. Os alunos tiveram oportunidade ter aulas com qualidade, ao passo que os professores, com mais séries com aulas de sociologia e no caso do Paraná que tinha duas aulas por semana, a possibilidade de ensinar com qualidade, com tempo e trabalhando no Estado citado, na metade das turmas (também possibilitou que outros professores pudessem ser contratados).
Junto a outros professores batalhei no campo das ideias quando tentaram diminuir aulas de sociologia para ampliar português e matemática. Levamos alunos de Sarandi em ônibus que alugamos para ajudar a questionar na paralisação que acontecia em Maringá (a maior foi feita na capital, a saber, Curitiba). A diretora de uma escola questionou que eu estava para ser pai naquele momento e que eu dependia do emprego, sugerindo que parasse de falar do assunto com professores e alunos. Lembro das lágrimas virem a meu rosto quando entrei na sala e meus alunos perguntavam sobre o assunto e tinha sido coagido a me calar. Olhei para o corredor e as janelas e decidi continuar a falar o que acontecia a nossa volta. Enfrentei também em outra oportunidade com meus colegas situação desfavorável quando abriram a possibilidade da Universidade Estadual de Maringá oferecer PARFOR de Sociologia, na modalidade EAD e apenas uma aula presencial por semana, com a justificativa de que precisavam de mais profissionais formados para lecionar, quando ainda não tinham esgotado as possibilidades de ofertar presencialmente em outros horários (só é ofertado o curso de Ciências Sociais na UEM no período noturno). Fui a Universidade e falei com alunos do centro acadêmico de Ciências Sociais de como isto impactaria suas vidas, e acabei indo nas salas do curso no período noturno para dialogar sobre o fato. Nós conseguimos valorizar o curso e, por hora, não existe ainda PARFOR de Sociologia na UEM.
Vivenciei derrotas que me marcam até hoje. Em 2015 ocorreu uma greve no Paraná que tinha mais de 50 pautas para as condições de trabalho que deviam ser revistas, a mais emblemática era que o governo pretendia alterar a Lei para poder utilizar o dinheiro do Paraná Previdência para saldar contas. Mesmo sendo professor contratado pelo Processo Seletivo Simplificado (PSS), sempre fui sindicalizado e entendia que tinha que estar na greve que lutava pela aposentadoria dos servidores (claro que almejava um dia ser concursado naquele Estado, mas entendia que era necessário apoiar mesmo que nunca o fosse).
Estive presente em uma das experiências mais amargas do Estado do Paraná: o dia 29 de abril de 2015 na praça Nossa Senhora de Salete, em frente a sede do governo do Estado do Paraná em Curitiba. Fomos atacados por policiais a mando do governador Beto Richa. Durante mais de 2 horas um governo que dizia precisar do dinheiro do Paraná Previdência despejou toda sua truculência com policiais armados com cassetetes, balas de borracha, bombas de “efeito moral”. Helicópteros também participavam da ação com atiradores jogando também estas bombas. Nunca pensei que sentiria a sensação de me “afogar no seco”, pela falta de ar provocada pelas bombas.
 Enquanto tiros de bala de borracha passavam por mim e via colegas serem atingidos enquanto recuavam, eu que também já tinha feito o mesmo, ligava para minha esposa para falar que “estava bem” enquanto a ouvia chorar. Este choro me cortava por que amamos o papel da educação na vida das pessoas. O choro de meus companheiros, literalmente em uma ação grevista que tinha se transformado em um massacre (uma guerra teria os dois lados em mínima igualdade) me assolam até hoje. Fomos agredidos e o governo conseguiu alterar a lei para poder sacar dinheiro do Paraná Previdência. Estava extremamente fragilizado ao praticar o que ensino em sala de aula, a busca por melhorar nossa sociedade, no caso, nossa educação pública e seus direitos.
Infelizmente os ataques não sessaram. Em 2017 após o golpe de estado jurídico-midiático-parlamentar de 2016 que retirou a presidente democraticamente eleita Dilma Rousseff do cargo e empossou Michel Temer, e este retirou, entre outras medidas nefastas, a histórica reparação da obrigatoriedade do ensino de Sociologia e Filosofia do Ensino Médio (devem ser retirada como disciplina obrigatória até 2019). 
O chão novamente saiu de meus pés. Com uma década de trabalho que tinha na época, posso afirmar que amo ser educador de Sociologia. Esta alteração permite a retirada das aulas, ainda mais quando vemos que na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) a jogada utilizada é falar que “não irá retirar Sociologia e Filosofia do Ensino Médio” mas que “só” as disciplinas deixarão de existir, e o conteúdo destas será anexado nas matérias de história e geografia. Neste momento, para respirar, mesmo com todo sofrimento, pensar no que disse Darcy Ribeiro em entrevista a Roda Viva ajuda:

Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.

Ainda passei por constrangimento público quando fui acusado de doutrinação marxista em uma escola que lecionei até o meio deste ano por ter levado um Doutor da UEM  para dar uma palestra sobre Karl Marx na disciplina de Sociologia (lembrando que é um dos principais autores da área e que a palestra além de excelente e qualificada, foi ofertada sem nenhum ônus a escola). Fui defendido por todos na escola, de alunos a professores, além de que fui brilhantemente defendido em nota de resposta ao Núcleo de Educação de Maringá (que encaminhou a denúncia anônima a escola aos cuidados de minha Diretora). Tempos extremos como os atuais em que querem banir o debate, em que a escola cada vez menos pode ser laica, em que a convicção parece ter mais relevância para a sociedade do que o saber arduamente acumulado e cientificamente sistematizado dos professores chegaram a minha pessoa, mas fui reconhecido e defendido por meus pares.
 Felizmente, depois de muito tempo, realizei dois concursos públicos em 2017 para professor de Sociologia (mesmo depois das más notícias, continuo buscando trabalhar no que e para que eu me formei). No concurso que participei em Joinville, Santa Catarina, fiquei em sexto lugar (embora fossem quatro vagas, tenho boa possibilidade de ser convocado por este certame valer por dois anos), e no que realizei em Rondonópolis, Mato Grosso, fui efetivado em décimo lugar de treze vagas (mesmo tendo feito três pós graduações nestes últimos 11 anos, por estas serem em Educação e não diretamente em Sociologia como o certame exigia, elas não foram contabilizadas para me beneficiar).
Minha maior estabilidade quando comparado a contratados (maior, mas não definitiva) permite finalmente que possa alçar voos maiores. Quero entender de forma qualificada  o processo de assenção e queda da Sociologia no Ensino Médio, entender as diferenças sistêmicas de políticas educacionais estaduais de como são oferecidas no ensino público do Mato Grosso e do Paraná além de produzir material reflexivo que possa ser usado nestes e em outros Estados visando um ensino público de Sociologia muito mais adequado e qualificado do que o sugerido na atual BNCC, um material alinhado a importância da disciplina para Charles Wright Mills relatada por Ricardo Dello Buono em entrevista a revista Sociologia.

Diante dessa conjuntura, a Sociologia é justamente a disciplina que vai se ocupar de tentar entender essas dinâmicas estruturantes que buscam conciliar a nossa animalidade e a civilização de cada um, e, principalmente, como os membros dessa socialização se organizam e se relacionam entre si.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei, nº 11.684/2008:  estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio. 
BRASIL. Lei, n° 13.415/2017: retira da redação do Art. 36 o inc. IV referente a obrigatoriedade das disciplinas de Filosofia e Sociologia no Ensino Médio.
BRASIL. Parecer CNE/CEB nº 38/2006: parecer homologado. Despacho do Ministro, publicado no Diário Oficial da União de 14/8/2006.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
JUNHO, Yago. Darcy Ribeiro: a antropologia vem do povo. Revista Sociologia, São Paulo, ano 8 n. 69, p. 52-59, 2014.
QUARESMA. Alexandre. A premissa sociológica: o professor de Sociologia Ricardo Dello Buono vê a ciência social como ferramenta importante para a libertação humana e enfatiza seu trabalho na realidade da América Latina e do Caribe. Revista Sociologia, São Paulo, ano 7, n. 64, p. 6-13, 2013.
RODRIGUES, Carla; SOUZA, Herbert de. Ética e cidadania. São Paulo: Moderna, 1994.