MEMORIAL ANALÍTICO DESCRITIVO
Alysson Cipriano Pereira
O futuro não nos faz. Nós é que nos
refazemos na luta para fazê-lo. (Paulo Freire)
O presente memorial tem
por objetivo descrever minha carreira de professor de Sociologia no Ensino Médio
a mais de uma década e o quão é importante entrar no Mestrado em Educação
ofertado pela UFMT para que consiga contribuir com um estudo para a melhora sistêmica
das aulas ofertadas no Estado do Mato Grosso em Sociologia e para nossa nação
como um todo, ao evidenciar um modelo de gestão de aulas ofertadas com um
modelo racional burocrático adequado a permitir o estímulo crítico do ensino.
Meu nome é Alysson
Cipriano Pereira, tenho 39 anos de idade, nasci e vivi praticamente toda minha
vida na cidade de Maringá, no Estado do Paraná. Sou o último filho de João
Cipriano Pereira e Maria Celia Pereira, que mesmo não tendo mais do que o
ensino primário básico, permitiram condições para seus filhos conquistassem o Ensino
Superior.
Sou casado com Hellen
Waleska Giroto Pereira a quase 10 anos, mulher que me apoiou em tudo, inclusive
não me permitindo esmorecer diante das dificuldades em trabalhar no comércio e estudar
na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Assim como eu, ela leciona na rede
pública de ensino. Desde 2012 compartilhamos da felicidade de termos um filho,
Logan Arthur Cipriano Pereira, que me deu mais um motivo para continuar lutando
para me tornar um profissional melhor e com a estabilidade mínima necessária
para trabalhar. Neste ano, consegui passar no concurso público para professor
do Ensino Médio na matéria de Sociologia no Estado do Mato Grosso.
Como exige este memorial
analítico-descritivo, comentarei agora a partir de minha formação de ensino e
minhas vivências educacionais. Comecei a estudar no ano de 1986, ano posterior
ao fim da Ditadura Militar que assolou brutalmente nosso povo e nosso ensino.
Embora não fosse perceptível ainda para mim que estava começando o processo de
letramento, matérias de humanas não faziam parte do ensino de maneira correta,
digo isso por causa da aberrante matéria de Organização Social e Política
Brasileira (OSPB), conhecida hoje por reverenciar nossos fardados opressores.
No ano de 1988 tivemos a
nova Constituição Federal, que permitiu já no seu início a liberdade de
expressão. Dois anos depois, quando entrei na quinta série, minha professora de
História disse em nossa primeira aula para esquecermos boa parte do que nossos
livros de OSPB diziam para nós, pois não eram verdade. Meu chão saiu de baixo
de meus pés. Como assim nossos livros mentiram? Quem era ela para dizer isso?
Ao terminar o Ensino Fundamental
mudei para o Colégio Estadual Dr. Gastão Vidgal, que também era público, mas
era uma escola maior e com o ensino médio. Lá, por uma dessas ironias do
destino, conheci um livro que teria na formação do autor a relação com meu
trabalho atual (e espero de toda minha vida). Não tive Sociologia no Ensino Médio
(mesmo o Paraná tendo começado a ofertar antes de outros estados, isso ocorreu
em 2006, e o fato que narro é do distante ano de 1997), mas a conheci como
medida corretiva por algo errado que fiz na escola. O diretor me passou para ler
e resumir o livro Ética e cidadania do sociólogo Herbert de Sousa (Betinho,
muito conhecido na época pelas campanhas de combate a fome na televisão).
Em 1998 terminei o Ensino
Médio e tentei ingressar sem sucesso na Universidade Estadual de Maringá no curso
de Educação Física. Os vestibulares eram costumeiramente no início e no meio do
ano. Meu primeiro vestibular foi no meio do ano de 1999 e o segundo no início
de 2000. No último dia de prova do segundo vestibular fiquei sabendo de 11
cursos novos que iriam iniciar, dentre eles dois de humanas, Ciências Sociais e
Filosofia. O novo vestibular seria um mês adiante, o que permitiria não ficar
de fora do ambiente universitário mais um ano. Filosofia era no período
vespertino, o que impossibilitava minha necessidade socioeconômica de
trabalhar. Ciências Sociais era no período noturno. Realizei o vestibular e
ingressei na primeira turma de Ciências Sociais da Universidade Estadual de
Maringá.
Ingressei na primeira
turma, mas só me formei no ano de 2006 (meu trabalho na época tomava tempo
demais e precisava de muito para a leitura acadêmica adequada). Não desisti, e
isso me possibilitou uma de minhas maiores felicidades, que é lecionar (no
Paraná as aulas de sociologia voltaram ao ensino médio em 2006 e
obrigatoriamente em todo o Brasil em 2008, décadas depois de serem retiradas
pela ditadura militar). Em 2007 comecei a lecionar sociologia no ensino médio,
e após 11 anos posso dizer que vivenciei o processo em que a sociologia foi
garantida por lei em 2008 e retirada sua obrigatoriedade em 2017.
Explicarei isso a partir
de agora. Até 2009 a disciplina era ofertada apenas em um ano do ensino médio,
o que dificultava trabalhar adequadamente os conteúdos programáticos. Porém, o
planejamento visava ampliação das séries ofertadas com o passar do tempo, como
previsto na Lei nº 11.684/2008:
–
iniciar em 2009 a inclusão obrigatória dos componentes curriculares Filosofia e
Sociologia em, pelo menos, um dos anos do Ensino Médio, preferentemente a
partir do primeiro ano do curso;
– prosseguir essa inclusão ano a ano, até
2011, para os cursos de Ensino Médio de 3 anos de duração, e até 2012, para os
cursos com 4 anos de duração.
Os
sistemas de ensino e as escolas que avançaram, já têm implantado um ou ambos
componentes em seus currículos, terão, com certeza, a possibilidade de antecipar
a realização desse cronograma, para benefício maior de seus alunos.
Em
consonância com a Lei, nº 11.684/2008 a maioria dos
Estados brasileiros retomaram progressivamente as aulas de sociologia no Ensino
Médio, e Estados como o Paraná a colocaram no ensino médio com 2 aulas em cada
ano. Vivenciei o atrito de estar no ambiente escolar neste processo, pois professores
de outras disciplinas tiveram aulas reduzidas para tanto. Por não ter memória
histórica de quando a disciplina foi retirada na ditadura militar ou por não
considerar a outra disciplina com o mesmo grau de relevância, parte dos
professores se revoltavam, mesmo que de forma silenciosa. Felizmente tínhamos a
Lei que concordava com o Parecer da CNE/CEB nº 38/2006, homologada pelo então
Ministro da Educação Fernando Haddad que exigia carga horária adequada para
garantir o ensino com qualidade.
Como já foi dito no Parecer
CNE/CEB nº 38/2006, não há dúvida de que, qualquer que seja o tratamento
dado a esses componentes, as escolas devem oferecer condições reais para sua
efetivação, com professores habilitados em licenciaturas que concedam direito
de docência desses componentes, além de outras condições, como, notadamente,
acervo pertinente nas suas bibliotecas. Nesta oportunidade, pode-se acrescentar
que as escolas devem definir claramente o papel desses componentes no seu
currículo, destinando carga horária suficiente para o seu adequado
desenvolvimento.
Vivenciei esta
implantação que teve ganhos para alunos e professores. Os alunos tiveram
oportunidade ter aulas com qualidade, ao passo que os professores, com mais
séries com aulas de sociologia e no caso do Paraná que tinha duas aulas por
semana, a possibilidade de ensinar com qualidade, com tempo e trabalhando no
Estado citado, na metade das turmas (também possibilitou que outros professores
pudessem ser contratados).
Junto a outros
professores batalhei no campo das ideias quando tentaram diminuir aulas de
sociologia para ampliar português e matemática. Levamos alunos de Sarandi em
ônibus que alugamos para ajudar a questionar na paralisação que acontecia em
Maringá (a maior foi feita na capital, a saber, Curitiba). A diretora de uma
escola questionou que eu estava para ser pai naquele momento e que eu dependia
do emprego, sugerindo que parasse de falar do assunto com professores e alunos.
Lembro das lágrimas virem a meu rosto quando entrei na sala e meus alunos
perguntavam sobre o assunto e tinha sido coagido a me calar. Olhei para o
corredor e as janelas e decidi continuar a falar o que acontecia a nossa volta.
Enfrentei também em outra oportunidade com meus colegas situação desfavorável quando
abriram a possibilidade da Universidade Estadual de Maringá oferecer PARFOR de
Sociologia, na modalidade EAD e apenas uma aula presencial por semana, com a
justificativa de que precisavam de mais profissionais formados para lecionar,
quando ainda não tinham esgotado as possibilidades de ofertar presencialmente
em outros horários (só é ofertado o curso de Ciências Sociais na UEM no período
noturno). Fui a Universidade e falei com alunos do centro acadêmico de Ciências
Sociais de como isto impactaria suas vidas, e acabei indo nas salas do curso no
período noturno para dialogar sobre o fato. Nós conseguimos valorizar o curso
e, por hora, não existe ainda PARFOR de Sociologia na UEM.
Vivenciei derrotas que me
marcam até hoje. Em 2015 ocorreu uma greve no Paraná que tinha mais de 50
pautas para as condições de trabalho que deviam ser revistas, a mais
emblemática era que o governo pretendia alterar a Lei para poder utilizar o
dinheiro do Paraná Previdência para saldar contas. Mesmo sendo professor
contratado pelo Processo Seletivo Simplificado (PSS), sempre fui sindicalizado
e entendia que tinha que estar na greve que lutava pela aposentadoria dos
servidores (claro que almejava um dia ser concursado naquele Estado, mas
entendia que era necessário apoiar mesmo que nunca o fosse).
Estive presente em uma
das experiências mais amargas do Estado do Paraná: o dia 29 de abril de 2015 na
praça Nossa Senhora de Salete, em frente a sede do governo do Estado do Paraná
em Curitiba. Fomos atacados por policiais a mando do governador Beto Richa.
Durante mais de 2 horas um governo que dizia precisar do dinheiro do Paraná
Previdência despejou toda sua truculência com policiais armados com cassetetes,
balas de borracha, bombas de “efeito moral”. Helicópteros também participavam
da ação com atiradores jogando também estas bombas. Nunca pensei que sentiria a
sensação de me “afogar no seco”, pela falta de ar provocada pelas bombas.
Enquanto tiros de bala de borracha passavam
por mim e via colegas serem atingidos enquanto recuavam, eu que também já tinha
feito o mesmo, ligava para minha esposa para falar que “estava bem” enquanto a
ouvia chorar. Este choro me cortava por que amamos o papel da educação na vida
das pessoas. O choro de meus companheiros, literalmente em uma ação grevista
que tinha se transformado em um massacre (uma guerra teria os dois lados em
mínima igualdade) me assolam até hoje. Fomos agredidos e o governo conseguiu
alterar a lei para poder sacar dinheiro do Paraná Previdência. Estava
extremamente fragilizado ao praticar o que ensino em sala de aula, a busca por
melhorar nossa sociedade, no caso, nossa educação pública e seus direitos.
Infelizmente os ataques
não sessaram. Em 2017 após o golpe de estado jurídico-midiático-parlamentar de
2016 que retirou a presidente democraticamente eleita Dilma Rousseff do cargo e
empossou Michel Temer, e este retirou, entre outras medidas nefastas, a
histórica reparação da obrigatoriedade do ensino de Sociologia e Filosofia do Ensino
Médio (devem ser retirada como disciplina obrigatória até 2019).
O chão novamente saiu de
meus pés. Com uma década de trabalho que tinha na época, posso afirmar que amo
ser educador de Sociologia. Esta alteração permite a retirada das aulas, ainda
mais quando vemos que na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) a jogada
utilizada é falar que “não irá retirar Sociologia e Filosofia do Ensino Médio”
mas que “só” as disciplinas deixarão de existir, e o conteúdo destas será
anexado nas matérias de história e geografia. Neste momento, para respirar,
mesmo com todo sofrimento, pensar no que disse Darcy Ribeiro em entrevista a
Roda Viva ajuda:
Fracassei
em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não
consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade
séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e
fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar
de quem me venceu.
Ainda passei por
constrangimento público quando fui acusado de doutrinação marxista em uma
escola que lecionei até o meio deste ano por ter levado um Doutor da UEM para dar uma palestra sobre Karl Marx na
disciplina de Sociologia (lembrando que é um dos principais autores da área e
que a palestra além de excelente e qualificada, foi ofertada sem nenhum ônus a
escola). Fui defendido por todos na escola, de alunos a professores, além de
que fui brilhantemente defendido em nota de resposta ao Núcleo de Educação de
Maringá (que encaminhou a denúncia anônima a escola aos cuidados de minha
Diretora). Tempos extremos como os atuais em que querem banir o debate, em que
a escola cada vez menos pode ser laica, em que a convicção parece ter mais
relevância para a sociedade do que o saber arduamente acumulado e
cientificamente sistematizado dos professores chegaram a minha pessoa, mas fui
reconhecido e defendido por meus pares.
Felizmente, depois de muito tempo, realizei
dois concursos públicos em 2017 para professor de Sociologia (mesmo depois das más
notícias, continuo buscando trabalhar no que e para que eu me formei). No
concurso que participei em Joinville, Santa Catarina, fiquei em sexto lugar
(embora fossem quatro vagas, tenho boa possibilidade de ser convocado por este
certame valer por dois anos), e no que realizei em Rondonópolis, Mato Grosso,
fui efetivado em décimo lugar de treze vagas (mesmo tendo feito três pós
graduações nestes últimos 11 anos, por estas serem em Educação e não
diretamente em Sociologia como o certame exigia, elas não foram contabilizadas
para me beneficiar).
Minha maior estabilidade
quando comparado a contratados (maior, mas não definitiva) permite finalmente
que possa alçar voos maiores. Quero entender de forma qualificada o processo de assenção e queda da Sociologia
no Ensino Médio, entender as diferenças sistêmicas de políticas educacionais
estaduais de como são oferecidas no ensino público do Mato Grosso e do Paraná
além de produzir material reflexivo que possa ser usado nestes e em outros Estados
visando um ensino público de Sociologia muito mais adequado e qualificado do
que o sugerido na atual BNCC, um material alinhado a importância da disciplina
para Charles Wright Mills relatada por Ricardo Dello Buono em entrevista a
revista Sociologia.
Diante
dessa conjuntura, a Sociologia é justamente a disciplina que vai se ocupar de
tentar entender essas dinâmicas estruturantes que buscam conciliar a nossa
animalidade e a civilização de cada um, e, principalmente, como os membros
dessa socialização se organizam e se relacionam entre si.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei, nº 11.684/2008:
estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a
Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio.
BRASIL. Lei, n° 13.415/2017: retira da redação do Art. 36 o inc. IV
referente a obrigatoriedade das disciplinas de Filosofia e Sociologia no Ensino
Médio.
BRASIL. Parecer CNE/CEB nº 38/2006: parecer homologado. Despacho do
Ministro, publicado no Diário Oficial da União de 14/8/2006.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São
Paulo: Editora Unesp, 2000.
JUNHO, Yago. Darcy Ribeiro: a antropologia
vem do povo. Revista Sociologia, São
Paulo, ano 8 n. 69, p. 52-59, 2014.
QUARESMA. Alexandre. A premissa
sociológica: o professor de Sociologia Ricardo Dello Buono vê a ciência social
como ferramenta importante para a libertação humana e enfatiza seu trabalho na
realidade da América Latina e do Caribe. Revista
Sociologia, São Paulo, ano 7, n. 64, p. 6-13, 2013.
RODRIGUES, Carla; SOUZA, Herbert de. Ética e cidadania. São Paulo: Moderna,
1994.